A flor do entulho

quinta-feira, outubro 02, 2003

FORA DE QUESTÃO


Num dia
drasticamente igual aos outros,
Com o mesmo cinzento no céu
e o mesmo stress no ar,
Alguém se cruza comigo na rua
maldizendo qualquer coisa banal.
Alguém enlouquece lentamente numa cadeira de café
rodeado de personalidades insuspeitas que se acusam mutuamente. (Num beco suburbano uma
prostituta corta lentamente as veias do braço esquerdo esperando pela vida que nunca teve)
Alguém enrouquece numa praça pública, gritando que não pode suportar mais a anormalidade em
que normalmente vive.
Alguém sobe a escadaria dum monumento e derruba do cavalo a estátua do senhor que jamais
alguém pôs em causa. (Perguntam-lhe porquê e ele ri-se vagamente ao mesmo tempo que é levado
pela polícia. "Louco" - comentário geral. Sim "terrivelmente louco".)
Alguém se embebeda com decibéis creditados por "n" watts de potência, destruindo assim toda a
sua ilusão com alguns minutos de música.
Alguém ouve o hino nacional atentamente e senta-se a meio, cansado por ter de suportar tanto
nacionalismo: grande peso o que esta geração transporta.
Alguém se ri energicamente da senhora que leva o bebé sem saber para onde vai.
Alguém se preocupa matematicamente com o futuro esquecendo-se naturalmente que ele não
existe.
Alguém chora com o desespero de alguém mas não sabe que chorar é normal.
Alguém apaga alguns anos de existência nalgumas canecas de cerveja sabendo que não tem dinheiro
para as pagar.
Alguém vai matando quantidades enormes de pessoas sem que por isso seja criticado. (Ele possui o
dom de passar despercebido)
Alguém corre loucamente por uma viela muito estreita, tão estreita que mesmo um recém-nascido
tem dificuldade em passar.
Alguém toma calmamente um café na esperança de lhe passar a vontade de morrer.
Alguém discute convictamente o resultado de um problema matemático sem saber porque o faz.
Alguém tenta provar à força a sua marginalidade só para ser aceite pelo sistema.
Alguém permanece indiferentemente sentado num banco de jardim, talvez pensando na origem do
vácuo ou, simplesmente dormindo.
Alguém tenta pacientemente manter atentas algumas pessoas sem mesmo pensar que elas não estão
lá.
Alguém procura responder a questões absurdas pensando que isso é uma grande coisa.
Alguém escreve tudo o que lhe vem à cabeça só porque não tem nada que fazer.
Numa tarde de inverno
igual às outras
Alguém permanece,
igual a si.



GIL