A flor do entulho

domingo, novembro 16, 2003

Calmamente Carlos entrou em casa e colocou o molho de chaves em cima da mesa do hall. Dirigiu-se para a sala mergulhou no sofá como mergulhara anos atrás na vida que hoje tinha. O seu cansaço não lhe permitia rever com exactidão tudo o que se passara mas a sua lucidez permanecia intacta. Desapertou os sapatos e atirou os pés para cima da cadeira que se encontrava à sua frente. As imagens que lhe surgiam na mente eram confusas mas evidentes.

Tudo se precipitara a partir do momento em que concluíra que já muito pouca coisa tinha importância. Somente uma imagem aparecia bem definida: o seu filho de cinco anos. Não fora ele e tudo já estaria resolvido há muito tempo. As transformações que se verificaram na sua relação com Rita, nos últimos anos, deixavam-no desiludido com aquilo que sempre julgara ser inabalável. A arrogância, a agressividade, a falta de solidariedade tinham substituído a compreensão e o encanto. O amor passara a ser uma luta inglória onde já quase nada cabia. As discussões tornaram-se insuportáveis e os diálogos e promessas de outrora pareciam ridículos no meio de tanta dificuldade de comunicação. Acima de tudo o cansaço tinha vencido a vontade e a rendição ao desenrolar dos acontecimentos levara tudo a ficar cada vez pior. Já nada importava e os diálogos, cada vez mais azedos, acabavam sempre em desesperados confrontos verbais cada vez mais violentos. Todo aquele desgaste levou a uma saturação tão grande que já nada era tolerado. As situações atingiam mesmo o ridículo quando as conversas se transformavam em monólogos para auto-justificação de coisas injustificáveis. Havia momentos em que parecia que uma onda de loucura pairava no ar tal era a quantidade de disparates que saíam das suas bocas. Somente duas certezas lhe pairavam na mente: por um lado amava sinceramente Rita; por outro não conseguia suportar mais a sua relação com ela.

Tudo se tinha precipitado com a história da viagem de trabalho. De trabalho seria a justificação pois de férias conjugais se tratava. Até aí tudo bem mas a recusa constante de Rita admitir tal situação deixava-o desconcertado. Juntava-se a isto a forma como a novidade lhe fora dada: "Carlos, no dia 18 de Junho vou para a Espanha para um congresso!" Desta forma seca e autoritária se punha em causa uma relação que já tinha sido de aconselhamentos constantes, de troca de opiniões, de decisões em conjunto. Desta forma arrogante, a troco de um passeio ao estrangeiro, se mostrava o pior lado da sua personalidade: a ideia que todos estão aqui para a servir. Não interessava o que era melhor para o filho, não interessava se Carlos atravessava o pior momento da sua vida com uma depressão profunda que o impedia de existir. Nada interessava. Tudo se podia trocar por aqueles momentos de uma viagem. Não interessava se ele também gostava de ir, Não interessava sequer dizer: "O que achas?". Tudo poderia ser diferente se estas três palavras tivessem existido "O que achas?". Certamente que, como noutras circunstancias ele seria o primeiro a incentivá-la. Ele estaria com ela nos momentos de indecisão. Ele seria o descomprimir do momento em que já não apeteceria ir. Somente três palavras definiram finalmente aquilo que já grande discussões não tinham concluído. Tudo se revelava agora claro.

As bases da relação entre os dois tinha-se minado lentamente ao longo do tempo. Situações "normais" como frigidez sexual, intolerância, depreciação constante daquilo que ele pensava, e agora desrespeito completo pela sua opinião fizeram com que Carlos chegasse ao ponto de saturação. Entre a atracção pelo amor e a recusa da relação, Carlos optara pela última. Não via isto como desistência mas sim o atingir o limite da desilusão.

Com tudo isto na cabeça Carlos dirigiu-se para a cozinha. Encheu um copo de água, meteu dois "Pazolan" na boca e deixou que a água e os comprimidos escorregassem lentamente pela garganta. Encaminhou-se para o quarto, deitou-se na cama e esperou pacientemente o efeito.

Sempre que olha indiscretamente a profundidade da conversa, pega no cigarro que arde incandescente no canto da boca e ejacula o fumo por entre os lábios carnudos. Tiago permanece assim durante horas, ouvindo as lamúrias e os sucessos de quem o rodeia. Parece ausente mas, de quando em quando, da sua face brota um sorriso que nos faz lembrar que está lá. Pela sua mente percorrem constantemente os fantasmas que recusa ver. A fantasia torna-se realidade quando arde na fúria que o faz crespar de raiva, voltando de imediato à passividade aparente que o caracteriza.

Para trás ficara o tempo em que percorria avidamente os locais por onde agora passa desinteressado. Max, Pedibar, Arreios eram locais onde a sua presença monopolicamente se impunha. As aventuras, a ironia, a paixão, tudo adormece fielmente dentro do álcool que consome. Ficara-lhe o olhar penetrante que nunca perdera mesmo nos momentos de maior conflito. A crueldade da loucura e do seu reconhecimento deixara-lhe marcas profundas no mundo que construíra.

-Hoje não estás nos teus dias?! - Dizia Margarida tentando trazê-lo de volta para o mundo donde o sentia ausente.

- Acho que vocês não estão a ver bem o problema. Afinal o Rafael até nem é má pessoa. Ainda ontem me deixou dormir em casa dele!

Respondia assim deixando desconsertados aqueles que julgavam poder intervir no seu mundo. De um momento para o outro e numa sequência ilógica de raciocínio, começava a praguejar contra qualquer "idiota" que não conhecia a não ser das notícias de um jornal.

- Olha, se fosse comigo era capaz de lhe arrancar o coração pelas costas , como fez o outro! Aquilo não se faz. Arrasar a rapariga daquela maneira!

À sua volta José encolhia os ombros, rindo-se de tanta incoerência. Afinal era o seu melhor amigo e não o conhecia minimamente.

Um a um foram-se levantando, deixando a mesa cada vez mais vazia. Os olhares iam-se perdendo e o avançado da hora fazia prever o fim próximo de mais uma etapa no encontro das vidas que se preenchiam. Tiago permanecia imperturbável com todas as ausências, parecendo querer sempre começar o que já se encontrava no fim.

- Recebi ontem uma carta da Zé. Ainda é daquelas que escreve. Está em Paris e diz que regressa na próxima semana. Que grande mulher! É boa em todos os aspectos!

As brejeirices tentavam levar a correras para onde ela nunca poderia chegar. Talvez assim conseguisse perpetuar a presença dos amigos que cruelmente se esvaía e o faziam regressar à solidão. Sem obter nenhum comentário continuava como que a ressuscitar algo que já não existia.

- Amanhã vou telefonar-lhe. Quem sabe se ainda gosta de mim?

- Seguia agora pelo caminho preferido: especular sobre o impossível. Há muito que sabia que a relação que tivera não passara dum mero encontro de desesperos. Havia já muito tempo que não se viam embora mantivessem contactos ocasionais.

Os cigarros e os copos sucediam-se a uma velocidade vertiginosa e o fumo que o envolvia dava-lhe o ar do sábio que regressara duma viagem no tempo.

Olhou à sua volta e verificando que se encontrava só, pagou a conta e saiu.

O dia amanhecera fresco. Sete horas da manhã não era a hora normal de andar na rua. Tiago dirigiu-se para casa do Carlos na esperança de encontrar uma última resistência à solidão. Hesitou antes de tocar a campainha pois sabia que não seria minimamente tolerável acordar uma pessoa àquela hora sem motivo justificado. Mas o que se teria passado com ele? Há alguns dias que desaparecera sem motivo aparente. Afinal encontrara a justificação. Carlos não aparecia. Tocou duas, três vezes e nada. Já estava para desistir quando ouviu um arrastar de pernas que se dirigia para a porta. Carlos apareceu como que regressado de outro mundo. A dose de comprimidos que tomara tinha sido excessiva e dormira durante dois dias. Tiago entrou sem dizer nada e procurou rapidamente uma bebida.

- O que bebes? - Perguntou sem hesitar.

Carlos ainda não estava a perceber o que se estava a passar. Tiago bebeu o copo de um trago e sentou-se.

- Então que é feito de ti? Há tanto tempo que não apareces? - Perguntou com o ar mais normal deste mundo.

- Que horas são?

- São oito da manhã, horas de levantar o cu da cama. Sabes estava a pensar cá numa coisa. Lembras-te daquela viagem surrealista que fizemos há uns anos? Aquela que quando saímos não fazíamos a mínima ideia de para onde íamos? E se tentássemos fazer uma coisa assim do género?

- Talvez não fosse má ideia!

- Podemos partir já, se quiseres.

Carlos levantou-se, dirigiu-se para o quarto, e passado pouco tempo apareceu, já vestido e com um pequeno malote na mão.

- Vamos? -Disse com um ar decidido.

- Vamos! - Respondeu Tiago da mesma forma.

Saíram e entraram no carro sem dizerem palavra um ao outro. Carlos ligou o motor, pôs o carro em andamento e dirigiu-se para a A1. Quando se aproximava do acesso, perguntou:

- Vamos para norte ou para sul?

- É-me indiferente. - Respondeu Tiago com uma grande indiferença.

Carlos meteu pela entrada que dava para a direcção norte, retirou o cartão e dirigiu-se para a auto-estrada. Carregou no acelerador a fundo e, de repente sentiu que já não tinha mais controle no automóvel. Ouviu um ruído seco e depois disso o escuro, o escuro total. Uma paz invadiu o seu corpo. Tudo deixara de ser problema. Olhou para o lado e viu Tiago como que a flutuar tal era a suavidade com que se movimentava. Riram-se um para o outro e ainda puderam ver ambulâncias a chegar e a tentar retirar dois corpos do meio de um emaranhado de ferros. Não deram muita importância ao que viram e dirigiram-se rapidamente para a eternidade onde os esperava algo que ainda não tinham encontrado.